Conto Inédito: A Sereia (Parte 2)
- Gabs Marques

- 22 de ago. de 2020
- 9 min de leitura
Atualizado: 30 de jun. de 2021
Kenna abriu a porta de sua cabine com uma carranca e os cabelos cacheados apontando para todos os lados. Seus olhos pareciam colados de sono e contive um riso.
— Não pode esperar, maruja?
— Infelizmente não, capitã.
— Tomara que seja importante mesmo – grunhiu, virando as costas para mim. Era a deixa para que eu pudesse adentrar a cabine.
Era um cômodo cheio de todas as quinquilharias possíveis e imagináveis: cristais, móbiles de astros, plantas secas, mapas enrolados em estantes, o cheiro de coisa guardada penetrava o nariz. Um lampião à óleo aceso jazia num criado mudo ao lado da cama de solteiro, junto com a pistola da mulher. Apesar de semi iluminado, a quantidade de coisas que possuía parecia cintilar como diamantes numa caverna. Aquilo tudo devia pertencer ao antigo dono do Siren, e não fora levado pela Marinha que possuíra a nau por poucos dias antes de nosso roubo. Não era possível que a capitã tivesse trazido aquilo tudo e conseguido colocar dentro do navio após poucos dias de sua pilhagem.
Ela afundou na cama, coçando os olhos.
— Diga de uma vez o que quer.
Pigarreei.
— Capitã, acredito que essa embarcação seja enfeitiçada.
Ela soltou um xingamento.
— Maxime, se veio me contar alguma história da carochinha pode sair imediatamente!
— É sério!
— Pois muito bem – falou, cruzando os braços e endireitando a coluna. – O que a faz pensar que o navio não seja seguro?
— Não disse que não era...
— Então para que me acordar desse jeito?!
— A sereia da popa, senhora!
Ela bufou.
— O que tem ela?
— Ela... ela fala!
Kenna arregalou os olhos, parada como uma estátua. Suas narinas se inflaram lentamente. Uma gargalhada aguda saiu conforme ela se dobrava nela mesma em riso.
— Maxime, você tem cada uma! – Ela limpou as lágrimas represadas. – De onde tirou isso?!
— Ela falou comigo, capitã! Não tem porque mentir para a senhora.
— Agora vamos, menina, deixe de sandice – Ela adquiriu um tom sério. – Até parece que o navio vai começar a falar. A menos que possa provar o que diz...
— Eu posso! Ou melhor ela mesma pode falar para você!
Peguei-a pela mão e saímos para o convés. A mesma moça que estava na vigia quando eu conversava com Darya ainda estava lá, olhando o horizonte que se aproximava. Provavelmente até o final do dia de amanhã já estaríamos no porto.
Caminhei a passos rápidos em direção à proa, com Kenna tropeçando logo atrás. Soltei seu braço assim que alcancei a amurada.
— Darya!
Senti a presença da capitã ao meu lado. A expectativa e a adrenalina corriam pelas minhas veias, torcendo para que a sereia se comunicasse.
— E então? – perguntou a mulher, depois que segundos se passaram e nada aconteceu. – Sinceramente, Maxime, você já inventou histórias, mas a sereia falante é novidade!
— Não é história, capitã! Eu conversei com ela esses dois dias! – retruquei, baixando os ombros ligeiramente. – O nome dela é Darya, não sabe dizer há quanto tempo está presa ao navio, somente que foi enfeitiçada.
Kenna riu de desdém.
— Ah é mesmo? – Ela esticou o pescoço para a proa, vendo o perfil da madeira. – Agora acredita em magia, maruja?
— Acreditamos em coisa bem pior, capitã. Confie em mim!
Ela bufou audivelmente.
O tempo passou e nada.
— Chega – anunciou Kenna. – Eu vou voltar pra minha cabine para ter um pouco de descanso, e espero não ser incomodada novamente por você ou mais ninguém, entendeu?
— Mas, capitã...
— Nada de mais! – gritou ela. – Você tem essa mania de viver no mundo da lua desde que entrou para a tripulação. Não é porque te resgatei que não posso te colocar de volta lá.
— Ela é real!
— E eu sou o Kraken – retrucou, cruzando os braços sob o peito robusto. – E, ainda que ela esteja mesmo enfeitiçada, que não é coisa da sua cabeça... como pretende tirá-la daí? Hein?
A pergunta que eu mais queria evitar...
— Darya só lembra de uma canção, que acho que é o feitiço que a aprisiona... – Encolhi-me, pronta para a resposta da capitã. – O jeito é queimar.
Silêncio se estendeu entre nós, como uma manta pesada.
— Queimar?! – Ela riu de escárnio. – Queimar?! Depois de todo o esforço que tivemos para capturar esse navio, você simplesmente acha que vou concordar em por abaixo uma estrutura dessas?! Somos invencíveis por causa dela!
— Somos invencíveis por conta dela! – Apontei para a sereia não muito longe, estática. Percebi cabeças da tripulação despontando da escotilha. – As lendas não dizem que ela atrai os navios valiosos e que os desenhos pela estrutura são para proteger a embarcação? Pois bem, eu estou afirmando que essas lendas são verda...
— CHEGA, MAXIME! – berrou Kenna, sua raiva transparecendo em sua voz.
Ela virou as costas e partiu, batendo a porta de sua cabine com força.
— Cabeça teimosa dos infernos! – xinguei baixinho, olhando a sereia de madeira atrás de mim. – E você! Por que não falou?! Para eu fazer papel de idiota?! Pois conseguiu! Agora ninguém vai acreditar em mim, parabéns.
— Eu sinto muito, Maxime... – sussurrou Darya, segundos depois.
Joguei os braços para o ar.
— Agora você fala! – A raiva me preenchia. – Podia ter dito toda sua história para ela!
— Como vou contar algo que não lembro?! – Ela parecia à beira das lágrimas, apesar de supor que não choraria já que não possuía água dentro de si para isso. – Não saberia nem por onde começar! E eu tentei falar, fiz todo esforço para me mexer, mas simplesmente não saia do lugar!
Passei a mão pelos cabelos, em exasperação. Sentia os olhos da tripulação nas minhas costas, curiosas para poder fofocar depois que houvessem se afastado de mim. Respirei fundo, tentando me acalmar.
Darya não tinha culpa. Ela estava presa ali e subitamente eu a forçava a conversar com alguém que nunca vira na vida. Era querer demais, considerando que ela nunca nem mesmo havia sido ouvida em toda sua existência como cativa do Siren. Além disso, ela não tem memória nenhuma de seu passado... talvez isso seja parte de seu feitiço, para que não conte o que houve com ela.
— Bom, e o que fazemos agora? – perguntei, baixinho. – Kenna não vai confiar em mim novamente para lhe trazer até aqui para que te ouça.
Ela deu de ombros, voltando a olhar o horizonte e o mar logo abaixo dela.
— Está tudo bem, Maxime... – murmurou ela, evitando me olhar. – Pelo menos você tentou, é o máximo que qualquer pessoa já fez por mim.
Mas eu não havia desistido dela. Não ainda.
Ao final do dia seguinte, que fora repleto de tarefas e olhares tortos na minha direção – inclusive, havia sido colocada em obrigações muito além das minhas, e considerei como uma punição da capitã por tê-la acordado – chegamos à São Bartolomeu, nas Ilhas Caribenhas. Era uma colônia francesa aliada dos piratas, ou seja, segura para nós, com suas casinhas de telhados avermelhados e paredes claras que circundavam a baía onde os navios atracavam.
A rampa com o porto foi estendida e a tripulação, juntamente com a capitã, desceu. Como parte de minha punição, Kenna me obrigara a ficar vigiando a fragata ao invés de ir para terra firme gastar o dinheiro que recebera da nossa última pilhagem. Eu amava o mar, mas a ilha tinha coisas que a água nunca poderia me dar, como algumas jóias, roupas novas e um chapéu para me proteger do calor escaldante que fazia naquelas águas.
Mais uma tripulante ficara comigo, uma jovem de pele macia e rosto de traços orientais chamada Mei. Ela deixava os cabelos na altura do queixo, que facilitava seu trabalho e sua vida de poucos banhos e voluntariou-se para me vigiar enquanto as demais iam para terra firme.
As horas se arrastavam no sol quente do Caribe. Imaginava uma caneca de cerveja gelada de uma das tabernas da cidade e sentia minha garganta se apertar de sede. Sem falar que precisava dar um jeito de tirar a menina de perto de mim se quisesse seguir com meu plano, mas Mei andava como uma sombra ao meu redor.
— Acho que vou dormir um pouco – anunciei, indo em direção à escotilha.
— A Capitã mandou vigiar a embarcação!
Dispensei o aviso com um gesto.
— Estamos em porto amigo, está muito quente e outra... – olhei para ela. – Você está aqui. Não são necessários dois pares de olhos sendo que não há perigo algum.
Ela hesitou por um momento, sem saber o que fazer. Fazia poucos meses que entrara para a tripulação e, se fosse como eu era, tentaria agradar Kenna de todas as formas possíveis e imagináveis.
— Vai ficar tudo bem, Mei, afinal você está armada! Se alguém suspeito chegar perto, é só atirar! – assegurei-a, com minha cabeça para fora antes de desaparecer.
Respirei fundo e esperei para ver se a menina viria atrás de mim ou não, mas os segundos se passaram e nada aconteceu, o que tomei como bom sinal. Fase dois.
Desci até os andares inferiores do Siren fazendo o mínimo de barulho possível, chegando onde as portinholas ficavam quase na linha do mar. Sentia as ondas com muito mais intensidade ali embaixo que no convés e senti uma forte vertigem me atingir. Irônico uma pirata sentir vertigem num navio.
Tateei até encontrar o que procurava e abri um sorriso travesso. Peguei um dos barris menores, fiz um furo e tracei meu caminho de volta até as escadas que davam para o convés. Escutava os passos distraídos de Mei, que devia estar morrendo de tédio.
Terei que ser rápida, mas antes... voltei para o convés e me aproximei da proa.
— Darya?
A sereia imediatamente virou o olhar para mim.
— Serei breve.
— Como assim? – perguntou.
— Prometi que te libertaria e pretendo cumprir a promessa.
Sua feição adquiriu um jeito preocupado.
— Maxime, o que você fez?
Sorri diabolicamente.
— O problema não é o que fiz, mas o que estou prestes a fazer – retruquei antes de me afastar, ainda ouvindo sua voz em desespero.
Era hora de por um fim naquilo tudo. Desci alguns degraus da escada e tirei duas pedras lisas, me aproximando da pólvora.
— Mei? – chamei a menina, que me olhou, alerta. – Eu se fosse você abandonaria o navio.
— Como assim?! Por quê?
Raspei as pedras uma na outra e uma faísca saiu, caindo no explosivo, que disparou como um cavalo de corrida para dentro da nau.
— Porque eu acabei de acender pólvora aqui dentro. O navio vai explodir!
Eu corri para a rampa que nos separava do cais e ouvi Mei desesperada logo atrás. Quando ela colocou os pés nas pedras da calçada, o convés do The Siren’s Howl foi pelos os ares. As chamas se alastraram pela madeira. A estrutura queimou por inteira imediatamente, e, antes de afundar, a proa se ergueu para o céu. Tive um tempo mínimo para me despedir de Darya, cujo corpo flamejava por inteiro, antes de sua estrutura desaparecer por completo nas águas escuras do porto de São Bartolomeu.
Seu braço dizendo adeus foi última coisa que vi.
O homens do cais gritavam e corriam, tentando entender o que estava acontecendo e se havia como impedir o inevitável e resgatar o navio de alguma forma, mas em vão.
Com o estrondo que fez, duvido que Kenna não ouviu. Como se fosse um feitiço, os gritos da capitã surgiram ao longe. Por um segundo pensei em correr e desaparecer na multidão que se aglomerava, mas desisti da ideia. Ia assumir meus atos como uma pessoa decente faria. Mesmo entre nós, piratas, existe honra.
— O que está acontec... – Ela olhou o espaço onde antes havia o Siren. – Quem fez isso?
Silêncio entre a tripulação.
— Fui eu, capitã – anunciei, dando um passo para frente.
A capitã arregalou os olhos, injetados de ódio.
— Segurem-na.
Imediatamente duas moças surgiram no meu campo de visão e agarraram meus braços. Chutaram a parte detrás de meus joelhos, fazendo-os dobrar e eu cair no chão imundo do cais. As pessoas ao nosso redor nada fizeram; me olhavam por alguns segundos antes de seguir com suas vidas. Sabiam que éramos piratas e tínhamos nosso próprio jeito de resolver as coisas.
Kenna se aproximou e puxou meu rosto para cima, para que eu a encarasse. Sua mão desceu em seguida, fazendo estrelas explodirem por trás dos meus olhos com o tapa. Ela agarrou meu queixo e o ergueu novamente.
—Você tem noção do que fez?!
Sentia sangue dentro da boca, mas não lhe diria.
— Completamente, capitã – respondi. – Eu prometi que libertaria a criatura da proa e foi o que fiz.
— Destruindo o meu navio! – ela gritou. – Que trabalhamos feito loucas para conseguir! Semanas planejando, vigiando guardas, subornando pessoas por informações, para você explodi-lo! Não tem o mínimo de respeito pelo esforço de suas irmãs de armas?!
— Pelo contrário, tenho todo respeito do mundo. Mas não acho certo deixarmos uma irmã presa por sabe quanto tempo...
Ela soltou uma risada de escárnio.
— O que somos?! – gritei, olhando as mulheres ao meu redor. – Acima de piratas, somos mulheres! E uma de nós esteve aprisionada por todos esses anos! Por que vocês acham que o navio ficou conhecido por trazer tesouros? Por que o nome dele é The Siren’s Howl? São coincidências demais para eu ignorar. – As marujas desviavam os olhos de mim, não sabia dizer se concordavam comigo ou me achavam louca. Provavelmente o segundo. – Não poderia ficar tranquila enquanto soubesse que Darya estava presa ali e continuaria ali porque não tivemos coragem de libertá-la. Você, capitã, me libertou anos atrás e me trouxe para a tripulação. O que me torna diferente dela?!
Um silêncio pesado se instalou entre nós. Ninguém ousava falar, nem para defender ou me acusar de insanidade.
— Você quis libertá-la, Maxime. Entendo – falou Kenna. – Que tal se unir a ela?
Antes que eu pudesse entender o que acontecia, o som do tiro preencheu o vazio. Meu peito ardeu com o contato da pólvora e o cheiro do explosivo com sangue atacou minhas narinas. Senti meus braços sendo soltos e procurei a ferida com a mão. Rubro tingiu minha palma.
— Jogue-a no mar. O porto é amigo, mas não queremos problemas para o nosso lado. Preciso descobrir quando um navio da Marinha pode aparecer, será nossa oportunidade.
As mulheres me levantaram e gritei de dor. A borda do porto se aproximou, onde antes, minutos antes, havia o Siren. A água fresca do Atlântico me abraçou e ardeu o local do tiro. Sentia o sangue se esvair e misturar ao mar, meus pulmões ardiam, assim como meus olhos.
A última coisa que vi preencher minha visão foi a luz refletindo na superfície da água, as bolhas subindo ao meu redor... e escamas cintilando de uma cauda.
Talvez tenha sido uma alucinação antes de morrer.



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