Conto Inédito: As Bruxas
- Gabs Marques
- 18 de jul. de 2020
- 12 min de leitura

— Você não devia entrar aí, Sabine - falou Aspen, acima da minha cabeça.
O espírito, que tinha a aparência de um rapaz de dezesseis anos, com vestes do século dezesseis e cabelo comprido preso com uma fita atrás, fora designado como meu guardião quando trocara minha alma pelos meus poderes, anos atrás. Aparentemente fazia parte do pacote venda-sua-alma-e-ganhe-um-protetor-insuportável; ou pelo menos era a única explicação para mim.
E, por mais que detestasse admitir, ele tinha certa razão. Aquele lugar era perigoso para qualquer tipo de criatura, fosse ela bruxa, como eu, ou não. Sentia como se alguma coisa grudasse naquelas paredes descascadas. Um espírito? Um demônio? Teria que entrar para ver.
Mas o prefeito da cidade tinha me dado aquele endereço e, portanto, não havia dúvidas: era ali, um shopping abandonado no meio da cidade, com hera crescendo pelas paredes e com janelas espatifadas.
Era a única bruxa da região. A maioria ou se mudara ou morrera ao longo dos anos, ou pelo menos era o que eu sabia. Na verdade, acho que em muitos anos eu era a primeira pessoa conhecidamente bruxa da cidade.
Não morava numa cidade grande, na verdade aquele era o único shopping que havia, e olha a desgraça que estava. Para o prefeito vir diretamente atrás de mim, boa coisa não havia de ser. Caso contrário a polícia já teria resolvido àquela altura do campeonato. Respiro fundo, desmonto da bicicleta, viro o suporte para que não caia e dou meu primeiro passo, atravessando as tábuas toscamente colocadas na entrada.
A primeira coisa que consigo identificar é o teto do local, que havia desabado e deixava a luz da lua lá fora se infiltrar. Vigas de metal enferrujado despontam do topo, uma escada rolante parada e caindo aos pedaços leva para o segundo andar. Vitrines de vidro sujo de poeira e alguns quebrados, com manequins despidos encaram o vazio, parecendo assombrações. Os mais novos, quando estavam se sentindo corajosos – ou embriagados – demais, apostavam quem conseguia ficar mais tempo ali dentro. Claro que não passava de alguns minutos.
— Sabine, tem certeza disso? Não to gostando desse lugar.
— Espere lá fora então.
Ele bufou.
— Você entendeu os termos do seu contrato quando me aceitou como protetor? Se você morrer sob minha tutela, não posso passar para o outro lado.
— Não é como se eu pudesse morrer tão facilmente agora.
— Melhor não arriscar né...
Um barulho nos silencia. Olho em volta, em busca de algum sinal, mas nada. Dou outros passos para dentro, invocando uma pequena chama avermelhada, que inunda o espaço em que estamos em nuances de ouro, atravessando a forma fantasmagórica de Aspen. Sinto os pelos do braço se eriçarem, sensíveis ao que quer que esteja ali.
Meu sapato faz um suave barulho pelo piso velho à medida que avançamos. Sinto a poeira e sujeira se impregnar nas roupas que visto: um par de calças jeans claros e uma camiseta laranja. Outro barulho me faz olhar na direção de uma loja de roupas abandonada, com alguns dos bizarros manequins. Devem ser ratos. Mas estava sendo paga para olhar o que havia ali, então, mesmo que fossem, tinha que entrar e conferir.
— Venha, Aspen, por aqui.
Caminho em direção à fachada, que tinha buracos em sua vitrine, provavelmente causada pelos jovens bêbados atirando pedras para dentro. O letreiro perdera e muito o que havia ali, sendo somente distinguível algumas letras numa caligrafia pintada de tinta. Aquela construção devia ter tido seu ápice por volta dos anos oitenta, mas agora era somente uma carcaça que rugia com a passagem de ar.
Arrasto a porta, que range audivelmente. Os manequins seguem estáticos ao meu redor, mas parece que me seguem por onde passo. Como bom fantasma, Aspen atravessa o vidro rachado e torce o nariz do lado de dentro.
— Que lugarzinho... por que o prefeito te mandou?
Dou de ombros.
— O pessoal da cidade me conhece a vida toda. Já ajudei em todo tipo de coisa, realizei partos, fiz poções para curar várias doenças... eles confiam em mim – retruco, indo para os fundos da loja, que se assemelha àquelas de departamento, estendendo-se para dentro da escuridão.
— E o que isso teria a ver contigo? Pelo visto a sua especialidade é cura, se é que fazer vidrinhos coloridos pode ser considerado isso.
Faço uma careta.
— Não é porque você é um fantasma que não posso costurar sua boca.
Ele ergue as mãos, em rendição.
— Só acho muito estranho mandarem você ao invés da polícia. Deve ser uns arruaceiros ou no máximo uns bichos perdidos ou então moradores de rua.
— Pode deixar que levarei sua queixa ao prefeito. Para ele me chamar, deve ser algo bem maior que bichinhos perdidos.
— Você acha, gostaria ou tem certeza?
Estou a ponto de responder quando uma luz fraca surge logo no fundo da loja. Apago a chama que invoquei e me aproximo, o que intensifica o brilho. Uma porta fechada, por onde irradia uma luz branca por todo o batente. Meu corpo quer correr dali o mais rápido possível, como se sua vida dependesse daquilo.
Toco a maçaneta, fria contra minha pele morena. É agora, Sabine, você consegue... Num movimento rápido, abro a porta com força e cubro meus olhos da luz ofuscante do lado de dentro, espremendo-os em razão do brilho intenso e repentino.
— Sabine, cuidado! – Ouço Aspen um segundo tarde demais.
Uma lâmina me atravessa. Minhas mãos caem e minha cabeça tomba para o abdômen, onde uma faca longa está cravada na minha barriga, começando a ensopar minha camiseta. Ergo os olhos para meu atacante à medida que caio de joelhos e dou de encontro com o rosto macilento do prefeito, que me encara de volta com raiva injetada nos olhos. Sinto um filete rubro escorrer pela minha boca e cuspo, respingando no piso.
— O que... o senhor... está fazendo?
— Bruxa! Queime no Inferno de onde veio! – ele urra, ainda segurando a arma, que pinga no piso sujo.
Olho-o descrente. Estávamos na porra do século vinte um ainda, até onde me constava pelo menos.
Sinto Aspen se torcer não muito longe, tentando de alguma maneira usar sua magia para me manter viva mais um pouco. Eu não era sua primeira protegida, o que explicava seu desespero em me proteger. Ele perdera a primeira na Caça às Bruxas de Salem em 1962 e era somente uma iniciada. Se eu sobrevivesse, ele nunca mais me deixaria sair de casa – ou nunca calaria a boca sobre o fato de que ele estava certo aquele tempo inteiro.
— Prendam-na – diz o homem, e percebo mais movimentação ao meu redor. Consigo finalmente distinguir prateleiras vazias, onde deviam ficar as roupas quando a loja ainda funcionava. A minha roupa já gruda no corpo e me sinto mais fraca conforme o tempo passa.
Passos ocos se aproximam e agarram meus braços de forma tosca, mas firme. É quando olho para as mãos: artificiais, sem desenho definido além dos dedos longos.
Os manequins. Sabia que minha sensação de que era observada não fora à toa. Tudo ao meu redor parece branco, como se a luz não existisse naquela parte do shopping há muitos anos.
— Como... o que está acontecendo...
As bonecas me levantam do chão, endireitando-me diante do homem, que tem um sorriso de deleite no rosto.
— Bonitas criaturas, não é mesmo? As almas rebeldes sempre tem serventia e podem ser quebradas e moldadas para caber nos menores espaços...
— Almas... – Cuspo, sentindo como se tudo girasse. Agradeci mentalmente pelas criaturas me segurando, senão já teria caído novamente. – De... quem?
— De outras como você.
Bruxas. Então era ali que elas estavam todos aqueles anos. E a cidade se vangloriava por ser aberta e aceitar todos os tipos de pessoas. Vejo Aspen arregalar os olhos e olhar em volta, desesperado e impotente. Não havia nada que pudesse fazer, estava preso num plano que o impossibilitava de exercer magia ou de se manifestar derrubando coisas ou possuindo pessoas. Se fosse assim, bastava que possuísse o prefeito por um tempo até que eu conseguisse fugir dali.
— Deus disse que devemos repudiar o Diabo e lutar contra ele em todas as formas. Não é por conta do jeito doce que você é menos pecadora, na verdade faz muito sentido se pensarmos que Lúcifer é ardiloso e se esconde em todos os lugares.
Pelos deuses e por toda a magia, ele enlouqueceu.
— O que... fizeram com o senhor...
Eu conhecia o prefeito. Ele era um senhor magricelo e gentil, que jogava milho para os pombos da praça e cumprimentava as pessoas na padaria. Não um caçador de bruxas louco da cachola vindo de mais de dois séculos atrás. Eu tinha ajudado no parto de sua netinha!
Ele riu.
— Eu sempre desconfiei do seu tipo. – Cuspiu ele, torcendo a faca em minha barriga e arrancando um grito de dor de mim. – As que se fazem de dóceis, que dão remedinhos e que envenenam a alma e nublam os sentidos das pessoas. Pode enganar as pessoas desta cidade, mas não eu. Assim como as demais antes de você, cuidarei para que não seduza mais ninguém.
“Prender vocês é a coisa mais fácil. Uma vez que a alma sai, ela vaga em busca de um corpo. Eu só a engano para crer que uma dessas bonecas”, ele bate na cabeça do manequim ao meu lado, que produz um som oco. “é seu mais novo lugar e, uma vez dentro, ela não sai mais. Tenho uma belíssima coleção de monstruosidades e você será minha mais nova aquisição”.
— O senhor... é doente! – retruco, espirrando sangue em sua cara magra.
Inabalado, ele tira um lenço quadriculado do bolso da calça e se limpa, guardando no mesmo lugar logo depois. Pisca na minha direção e sorri, da mesma forma que já fizera falando comigo tantas vezes.
E então puxa a arma, fazendo um rio de sangue esguichar no chão. Sinto o desespero correr em minhas veias e escorrer pela barriga, juntamente com a adrenalida. Se acalme, Sabine, você não pode ficar nervosa senão perderá mais sangue. Mas, por mais racional que seja, ainda respiro rápido demais.
— Coloque-a ali na mesa, não deve demorar muito mais tempo – declara o homem, dispensando minha presença com um girar de mão.
Sou arrastada até uma bancada de ferro, a única coisa aparentemente nova naquela construção toda, apesar de que estava suja. Se de sangue seco ou ferrugem ou qualquer outra coisa, não conseguia dizer. As manequins me deitam e prendem meus pulsos em algemas de couro marrom nas laterais, tal qual aquelas macas de hospício antigo, que a gente vê nos filmes de terror.
— Despreza a magia... – murmuro, sentindo o gosto férreo na boca – e usa da mesma coisa. É tão... bruxo... quanto nós!
Antes que possa dizer outra coisa, ele dá um tapa, fazendo espalhar uma nova dor pelo meu rosto. Tento conter as lágrimas que se formam pelos cantos.
— Para conter os avanços do Diabo, o homem correto deve se valer de todas as armas. Inclusive e especialmente aquelas que seus inimigos jamais imaginariam serem usados contra eles. Que forma mais triunfante de vencer, destruindo-os com a mesma coisa que tanto amam!
“Esta cidade estava em paz até você aparecer. Mais de trinta anos sem uma criatura da sua laia por aqui. E farei com que nenhuma outra surja, nem que tenha que prender cada uma de vocês e colocar essa construção abaixo, enterrando-as para sempre aqui”.
Preciso me acalmar. Sinto a adrenalina e o medo preenchendo-me como pólvora, o que é mais desesperador ainda; quanto mais agitada fico, mais sangue perco. Preciso fazer alguma coisa. E rápido. Minha visão começa a borrar e meu corpo pesa toneladas. Quero dormir mais que tudo.
Respiro fundo. Não estou sozinha naquele mausoléu em forma de shopping. Se o que ele diz é verdade e cada manequim é uma bruxa, a magia ali é enorme. Fecho os olhos, tentando acessar cada alma perdida e trazê-la para mim. O silêncio é tudo que recebo.
— Já perdi tempo demais com você, bruxa.
E ele crava a faca novamente em mim, dessa vez no meu peito, no espaço entre os seios. Meu corpo se contrai e cuspo sangue, que escorre pela lateral da boca e ensopa meu cabelo cacheado.
Vejo Aspen flutuando acima de mim, quase translúcido. Assim que eu deixar aquele corpo, ele desaparecerá e voltará para o limbo. Ou onde quer que os fantasmas guardiões ficam antes de acharem uma nova protegida.
Uma ideia surge. Talvez funcione.
— Chame-as... – sussurro, quase inaudivelmente.
E fecho meus olhos.
Escuro. Achava que veria uma luz no fim do túnel, mas pelo visto a única coisa que meu cérebro consegue processar é escuridão. Não sinto meu corpo, ou ele deve estar desligando aos poucos.
E então vejo um ponto de luz surgir naquele breu. Uma bolinha azulada, seguida de outra vermelha, e outra amarela, e mais uma verde. Sua presença me preencheu e pareceu me abraçar, como se várias mãos me tocassem aos mesmo tempo, mas não estivessem ali de verdade.
Abro os olhos. Aquela luminosidade ofuscante parece ter diminuído consideravelmente, como se as bordas da minha visão estivessem tingidas de preto.
Sorrio.
— Isso... – falo, com mil vozes além da minha, mas ainda soando como eu mesma. – era para nos ferir?
Sentia como se minha boca fosse se rasgar de tão largo que ele estava. Agarro o punho da faca e a puxo num único movimento, sentando-me logo em seguida, admirando a arma distraidamente. Viro a cabeça para o lado, encarando o prefeito com o mesmo sorriso.
— Matem-na! – ele grita para as bonecas, e não respondem, permanecendo em seus lugares. O prefeito olha ao redor, em busca de uma saída, mas ele estava fundo demais no armazém, enquanto que eu, agora de pé, estou de costas para a porta de onde viera. – Vamos! O que estão fazendo?!
Mas as manequins não se moveram. Em contrapartida, senti como se mil vozes se assomassem ao meu peito aberto.
— Nunca mais sob seu poder – urrei, sentindo a magia percorrer meu corpo e vazar pelas mãos. – Nunca mais caladas! Nunca mais presas!
As prateleiras tremeram violentamente, balançando para os lados e ameaçando cair sobre o homem. A luz estourou e nos mergulhou em escuridão novamente.
— Mil bruxas você prendeu. Mil bruxas caçou e amaldiçoou. Mas devia saber: na magia, aquilo que faz sempre volta em três vezes.
Um brilho branco me cerca, como se eu inteira resplandecesse tal qual uma lâmpada néon. Fecho os olhos por um segundo, deixando o poder preencher cada centímetro do corpo. Memórias das outras bruxas piscam por trás dos olhos: delas conversando com vizinhos, vendendo poções e cremes, dançando pela praça ou pelo bosque que havia não muito longe, pelas risadas e momentos que haviam compartilhado antes de serem aprisionadas.
Não somos monstros. Mas se é o que querem, ou o que preferem ver de nós... então é o que lhes daremos.
E então a magia explode, varrendo tudo ao meu redor. Grito, conforme sinto a força e intensidade do poder me deixar e se espalhar por todos os cantos. Quando finalmente sinto que não há mais nada em mim, caio no chão sujo de sangue e poeira como um balão esvaziado.
Quero dormir eternamente e até fecho os olhos quando sinto um calor se espalhar por mim, alcançando meu rosto, peito e tronco e, lentamente, curar as feridas. Sento vagarosamente, receosa, quando olho ao redor.
Tudo está destruído. O metal das prateleiras se torceu como galhos de árvores, furando o piso velho. O que não se torceu pareceu pulverizar e virar cinzas, flutuando suavemente pelo ar e caindo como flocos de neve.
O prefeito desapareceu também. Não acho que ele tenha conseguido escapar, não havia como e, quando me levanto do chão, vejo o lenço quadriculado jogado.
Está terminado. Que nocuerunt mihi, non currere a furore meo. Ouço as várias vozes das bruxas na minha mente. Aqueles que me ferem, não fugirão da minha fúria.
— Onde está Aspen? – falo, percebendo que meu protetor não está aqui.
Sua missão era salvar uma bruxa do destino que lhe fora escrito. Respondem e vejo uma luzinha se apagar na minha mente. Temem aquilo que não conhecem e destroem aquilo que acham que ameaça de alguma forma.
Obrigada por nos ter libertado. Finalmente podemos tomar nosso lugar com o Deus e a Deusa.
Uma a uma, as luzes se apagam, à medida que as almas partem. Quando o último pontinho desaparece, sinto solidão. Pela primeira vez em muito tempo estou sem meu protetor ao lado, me atazanando. Detesto admitir, mas é horrível.
Caminho pelo shopping em direção à saída, que está sem as tábuas agora – provavelmente pulverizadas. Me pergunto até onde foi a magia. Será que afetou a cidade?
Antes que possa pensar mais e ficar paranoica, pego minha bicicleta e desço pelas ruas em direção ao centro comercial.
Uma névoa parece me cercar. Não sei que horas são nem quanto tempo fiquei naquele shopping. Desmonto e empurro a bike, até identificar uma loja vinte e quatro horas aberta. Tudo está escuro nela, e, ao passar pela porta, percebo que não há viv’alma ali dentro.
Ignorando completamente meu meio de transporte, corro em direção ao bar da cidade, onde todo mundo sempre ia para tomar um chopp e ficar conversando. Passei pela porta, e vi o salão vazio. Não é possível...
Estou voltando para a saída quando algo na minha visão periférica me chama a atenção: a chopeira está ligada e a bebida escorre, mas, quando olho por sobre o balcão, vejo o copo quebrado no chão, inundado de chopp e nenhum atendente.
A magia apagou a cidade. Ou melhor, a população. Não há outra explicação: um êxodo súbito não é bem plausível.
Sinto o grito sair e se espalhar pelo vácuo, ecoando como som na caverna.
— Eu falei para não entrar lá, Sabine. – Ouço uma voz dizer. – Meus Deuses, o que é isso na sua cara?
Aspen?! Olho ao redor e lá está ele, recostado contra o batente da porta de entrada do bar. As lágrimas de felicidade se acumulam nos cantos dos olhos e as limpo rapidamente. O abraçaria se não tivesse certeza que acabaria atravessando-o.
— Achei que tivesse ido embora. E o que tem meu rosto?
Ele suspira longamente, passando a mão pelos cabelos que um dia foram loiros, mas agora eram de um brilho acinzentado.
— Eu tinha, mas aí disseram que minha protegida ainda demandará muito de mim. Quando acho que agora vai, eles dificultam mais – resmungou.
Olho para meu reflexo no fundo do bar, num espelho onde ficam dispostas as bebidas para os clientes. Uma marca prateada é visível no meu queixo e desaparece dentro da minha camiseta ensopada de sangue. Será? Levanto a blusa e ali está minha confirmação: um traço prata percorre meu tronco do pescoço até o local da primeira facada, numa costura cintilante. Elas tinham me salvado.
— Bom, e agora? – falo, saindo do bar e sentindo a brisa do lado de fora conforme o céu adquiria tons cada vez mais vivos. – Parece que apagaram as pessoas da cidade toda.
— Eu não percebo mais nenhuma alma além de nós dois também... – Ele me olha. – Elas deviam ter seus motivos para fazer isso.
— Sumir com uma cidade inteira?!
— Os habitantes deviam saber que elas estavam sendo perseguidas pelo prefeito – responde ele. – Não tinha como ele ter prendido aquele monte de bruxas sozinho.
Tudo que fizer, volta três vezes. Aquela tinha sido a frase das bruxas. Ainda que os cidadãos fossem inocentes, a magia repercutiria com muito mais força.
— Acho que tenho certo crédito por ter feito isso com a cidade...
— Crédito?! – replicou ele, cruzando os braços e rindo. – Você quis dizer culpa, não é?
Dou de ombros.
— Bom, tem sempre a opção de se mudar.
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